Quando eu bebo, me torno alguém muito desprezível (mais do que sóbrio). As poucas conveniências e costumes sociais são ignoradas e começo a tagarelar qualquer barbárie só para manter o foco da atenção em mim (sim, tenho uma “baixa” estima).
A vantagem quando eu ficava perto do Bitchô, é que ele ficava tão bêbado quanto mas conseguia manter uma elegância na conversa e contornava as minhas grosserias e descortesias (vantagem da amizade, digamos). Hoje passo vexame sozinho. 🙂
Mas quando conversávamos só nós dois, não havia limites. E aqui é um lado interessantíssimo de sua personalidade; ele sempre estava antenado em todo tipo de notícia internacional e dominava seus contextos históricos e culturais. Yemen, Myanmar, Cashemira, Sabra, Chatila, rohingyas, eram palavras comuns em suas falas, citando de cabeça os políticos ou militares responsáveis pelas atrocidades.
Ele era, num sentido estrito, um humanista, que demonstrava alta confraternidade com estranhos, e isto era o que cativava seus amigos. Este sentimento de irmandade vinha um pouco da nossa interpretação de herança evolutiva, uma origem comum biológica, que tornava uma pessoa de vínculo sanguíneo tão amiga quanto um estranho de primeiro encontro. Aqui o humanista “estrito” ampliava a sua atenção e seu carinho se ele reconhecia no interlocutor as mesmas características humanistas (meter o dedo na ferida como São Tomé).
Fazia parte de suas leituras regulares, assuntos sobre genocídios, limpezas étnicas/religiosas e outros conflitos militares ou não. E geralmente em nossas conversas noturnas, abordávamos estes assuntos, já que num churrasco ou num encontro mais ‘alegre’ estes assuntos são “inconvenientes”.
Lembrei destes tópicos que conversávamos, quando assisti há 3 semanas na tv um relato de uma médica brasileira relatando um atendimento que ela fez na primeira semana da invasão russa no território ucraniano, descrevendo uma menina de oito anos de idade que foi estuprada sequencialmente por 15 homens.
Se o Bitchô estivesse vivo, desdobraríamos algumas horas sobre o conflito bebericando uma cerveja, citando sem medo esta tragédia mas sem ser indiferente ao sofrimento humano.
E isto talvez fosse um senso do porque ouvíamos punk rock. Digo isto porque quando você lê ou assiste tanta desgraceira que a espécie humana perpetrou contra o seu próximo, você começa aos poucos, bem aos poucos, a se tornar um existencialista, que identifica-se como um ser sócio-histórico dependente de mecanismos e regras sociais e econômicas que determinam o seu modo de vida (ou de morrer). Não nascer herdeiro de fortuna ou não jogar futebol, era padecer na existência; e esta “assimetria” social-econômica se transformava em reflexão em uma letra que torna-se uma epifania quando se é um garoto ouvindo música do rádio que tocava na sala de casa:
Estava deitado na cama
Conversando com a minha mulher
E com a TV ligada
Num desses jornais qualquer
Meia hora de chuva
E esta cidade já tá toda alagada
Treze corpos achados
Na favela que foi soterrada
Aqui ninguém vai morrer no Vietnã
Aqui ninguém vai Rá-Tá-Tá-Tá no Vietcong
Os garotos daqui não vão amar ninguém
Aqui se morre de fome, antes de ser alguém
So let’s go baby
Senão a gente vai perder o trem
Senão a gente vai perder o trem
E é tanto canal que eu já nem sei onde é que eu boto
Com uma mão na sua coxa e a outra no controle remoto
Se a malária é amarela e a cólera verde bandeira
Nós somos o quarto imundo, colorido pra encobrir a sujeira
Aqui ninguém vai morrer no Vietnã
Aqui ninguém vai Rá-Tá-Tá-Tá no Vietcong
Os garotos daqui não vão amar ninguém
Aqui se morre de fome, antes de ser alguém
So let’s go baby
Senão a gente vai perder o trem
Senão a gente vai perder o trem
Eu desci cá pra selva, toda plantada de asfalto e néon
Onde fica esquisito o que na tela já não era tão bom
Uma mulher da rua me conta sonhos de alegria e fartura
Seus olhos como estrelas nesta noite cada vez mais escura
E lá no bar da esquina mais um profeta cospe fogo no ar
Fogo que nem esta chuva vai conseguir apagar
Uma criança sem braço, deitada no banco de jardim
Seu choro é alto e demente, agora ela olha pra mim
Esta letra chama-se “Muito Além do Jardim”, do Marcelo Nova, um dos melhores discos de rock brasileiro que você poderia ouvir e o título da música é uma referência ao filme preferido de Peter Sellers, mas isto é história para outro post.
Quando o Maurício ouviu esta música num dia qualquer no meio de uma semana qualquer de 1991, as rádios tocavam de forma nauseante a cover “Era um Garoto que Como Eu Amava os Beatle e os Rolling Stones”, previamente gravada pelo grupo “Os Incríveis” e que era originalmente uma música italiana gravada por Gianni Morandi.
O destaque em vermelho foi um “clic” para ele, uma incisão naquele cancro purulento do jabaculê das rádios para destilar todo o ranço cultural de mercado de consumo que ele era submetido na versão piegas do Engenheiros do Hawai.
A partir daí, ouvir Inocentes e ler Bertrand Russel eram consequências inexoráveis.