Estórias da caserna [11]

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Onde eu trabalho, há um espaço em que a edificação permite uma proteção contra intempéries, num espaço contíguo à calçada externa; e a presença de moradores de rua sempre foi uma constante naquele local por décadas (trabalho no local há quase trinta anos).

Há alguns anos, numa decisão covarde e cruel da Alta Direção de onde eu trabalho, decidiram intervir no local, colocando vegetação “anti-morador-de-rua”, possivelmente uma planta parente da agavaceae ou asparagaceae, mas com folhas inflexíveis e acuminadas, diabolicamente escolhidas para coibir a presença do ‘vizinho’.

Água mole em pedra dura… passado um tempo, a herança da insistência dos primatas nas savanas africanas sobrepujou a ‘mata’ celerada do Alto São Francisco, e percebi que não importa o quanto tentam expulsar os pobres e os desprivilegiados da vista dos privilegiados, a maré de ondas de realidade é interminável.

Ontem, tive uma breve leitura desta realidade em dois momentos, nem ditosos, nem reprováveis…

Chegando a pé ao escritório, passando pelo ‘vizinho’, vi que ele adesivou folhas de caderno de brochura na parede da edificação. Era uma manhã curitibana, 9° C de mínima, e ele dormia sobre o saco de dormir, o que me permitiu diminuir o andamento dos passos e ler um das folhas, que tinha a maior fonte:

“Obrigado pelas meias.”

Eu já tinha visto o ‘vizinho’ lendo alguns livros, e ficava imaginando uma cultura literária das ruas e saraus de leitura marginal. Ver a sua manifestação de escritor, de forma tão cândida, agradecendo uma doação de uma meia para ele (presumidamente anônima), que interpretei como uma relação de desconhecidos, alguém que viu a frente fria com temperaturas congelantes como a oportunidade de doar uma peça de vestuário, e alguém que achou uma folha de papel para agradecer a doação ao amigo secreto.

No horário de almoço, no mesmo dia, tive que ir para a minha residência de carro. Na volta acionei o pendrive para ouvir música, numa seleção que ia de RxDXPx a Mozart. Neste dia, resolvi pela Flauta Mágica de Mozart, e durante a primeira cena (Zu Hilfe!), passei na frente da paróquia da minha região, e vi uma grande fila, imensa maioria de mulheres e crianças, com sacolas ou outras opções para carregar as doações que seriam distribuídas naquele dia. Lá dentro do carro, um sentimento de consternação indefinível me afligiu, olhando para o meu privilégio de ouvir Mozart (ou RxDxPx) enquanto as pessoas ao meu redor subsistem.

Unsightly slums gone up in flashing light

Dead Kennedys – Kill the Poor

Don't be a troll; neither a pussy too.