Orquestração musical e política

Padrão

Um músico é uma pessoa que pode gerar música através de uma combinação de sons de múltiplas formas (melódicas), harmonias e elementos (visuais, percussão, vibração, emocionais, …). Os primeiros artefatos musicais registrados na paleontologia apresentam um paralelo entre o desenvolvimento da nossa caixa cerebral e a proto-música arqueológica, deixando claro que os caçadores-coletores que foram nossos antepassados precisavam de música, senão na percepção individual da arte, mas como um trato social, um fator de coesão.

Neste momento político, há uma guerra de costumes musicais, evidenciada pela penetração da internet no interior do país e nas famílias que não tinham acesso a ela, e onde um lado deste conflito é a percepção de grupos de minoria que antes estavam nas bolhas dos grandes centros urbanos. Mas a internet que chega, muitas localidades em 3G e instável, é pela via das plataformas de redes sociais, com o filtro de seus algorimos. A pauta dos costumes se viu em desbalanço quando confrontado com iniciativas progressistas demais (no sentido do libertarianismo) para a cultura eurocentrista e ancap que é a regra da sociedade brasileira do interior do país.

Lembro disso quando, no mês passado, passeando na minha região (rural, mas com alta taxa de urbanização) vi um garoto, na faixa de seus 15 anos, cabeludo com a camiseta do Cannibal Corpse. É provável que seja um visitante, mas se for um filho de um dos meus vizinhos, suponho um ar de estranheza … Se fosse só com Gore Metal até nem estranharíamos tanto, mas a demonização/excretação do funk brasileiro/carioca, que possui um viés tão abertamente racial, e que aos longos dos anos 80 e 90 era facilmente associado ao narcotráfico ou a escatologia sexual, quando a mídia abordava/noticiava com parcialidade que retroalimentava a perspectiva preconceituosa, ignorando uma legião de músicos e cantores que produziam conteúdo que era consumido em favelas. Os nomes nacionais que atualmente são consumidos em outros países através dos canais de streaming, muitos oriundos destas favelas, irrita os “vigilantes da tradição” pois outros gêneros (!) musicais não alcançam estes patamares apesar do jabaculê.

E aí a história entorna feio… os “vigilantes da tradição” agora impõem que algumas orquestras brasileiras executem somente músicas do segmento do jabá

… deixe-me explicar um pouquito a minha perspectiva …

Num lance mais histórico, o nacionalismo na música brasileira teve um evento luminar na criatividade de Villa Lobos e de todo aquele movimento da Semana de Arte Moderna; e a MPB não foi a mesma desde então. Utilizei o exemplo de Villa Lobos mas diversos outros poderiam ser elencados, mas este exemplar se relaciona ao preâmbulo da movimentação do jabá. Antes e depois, movimentos de ‘resgate’ das “raízes” criaram motivações comerciais e criações artísticas interessantes, mas algo mudou do antigamente para agora, a criança de hoje consegue sintetizar um piano junto com um pandeiro em um equipamento eletrônico ou software, sem a necessidade de educação musical, nenhuma erudição envolvida, muitas vezes apenas o instinto musical. Eu acho que há algo muito interessante neste universo, já que há muito conteúdo de qualidade sendo produzido mundo afora, e com exceção dos agraciados pelo streaming, ficarão na obscuridade de forma involuntária esperando uma ‘oportunidade’. Um oceano de desconhecidos que estão produzindo um universo de músicas …

Aqui entra a tendência de banalização da classe elitista. Percebendo que letras monocromáticas e melodias abrolhadas não fazem o verão, utilizam de seu poder e influência para que orquestras sinfônicas, essencialmente mantidas por recursos públicos (ou de renúncia fiscal), estão sendo coagidas a inserir em sua playlist somente exemplos do cancioneiro popular. A palavra ‘somente’ no parágrafo anterior indica uma movimentação perigosa para a cultura, já que é uma forma de hegemonia cultural em detrimento da pluralidade de conhecimentos. Em outras palavras, acho legal que a OSESP toque o repertório de Cascatinha e Inhana, mas acho perigoso demais obliterar Bach. Adota-se os “novos ventos” ou, para aqueles que não flexionam, são convidados a ouvir o Concerto de Brandeburgo em casa.

Sei que a música clássica européia é um disparate para aquele candango que só ouviu música sertaneja, e também por não fazer parte de sua experiência cultural. Música, antes de tudo, é um significado social. Mas restringí-la por discricionaridade é um desacerto despropositado…

Mas voltando a falar de Bach, ainda bem que existem outras formas de inserir a música na vida das pessoas, como no episódio 10 do anime “Spy x Family” que toca como fundo musical o Concerto para dois violinos em ré menor (BWV 1043). Guitarras nervosas, metálicas, coadjuvam no anime “ChainSaw Man” desde o primeiro episódio. E sinto um certo alívio em saber que os adolescentes de hoje assistem mais anime do que os meios do jabá. Eu mesmo tento sair da ‘bolha’ em que estou inserido e ouvir coisas diferentes, como faço pelo aplicativo “Radio Garden” por exemplo, e me surpreendo com o inusitado no meu processo de alfabetização.

Sem música, a vida seria um erro.

Aforisma 33 do livro ‘Crepúsculo dos Ídolos” de Friedrich Nietzsche

Don't be a troll; neither a pussy too.