Allegro e Affetuoso

Padrão

Concertino

Acho que a minha vivência com música nunca foi tão prazeirosa como agora. Entre as aulas, o meu serviço, tenho um pequeno espaço para apreciar e estudar o que ouço de forma tão caótica.

Isto é um reflexo do privilégio de ter sido educado o suficiente para ouvir Dead Kennedys e Jessé, mas também um acaso, uma coincidência, de vários estímulos não-intencionais que me levaram por um caminho não planejado.

Ouvir música de forma contemplativa e solitária (melhor modus operandi) é hoje uma forma de resistência e de anacronismo numa proximidade de gerações acostumadas aos algoritmos de streaming e de podcasts.

Ripieno

Fico a imaginar que se eu tivesse aprendido a executar alguma melodia (de forma satisfatória) eu teria tido algum outro destino, entre fazer parte da entourage de G. G. Allin ou receber elogios de Yo-Yo Ma. Nestes exercícios de rica imaginação, eu canto no banheiro já satisfeito com o resultado, ainda que há momentos em que as dúvidas … “como se faz este acorde? … “que instrumento é este? … “pela voz, ela deve ter bastante leitinho?”…

Tutti

Há um rico universo que estou descobrindo com a música clássica, desde a relação intempesta da ‘Eroica’ de Beethoven com Napoleão Bonaparte até técnicas de Luteria, enquanto ouço música popular (de Noel Rosa a Soundgarden) com um novo ‘ouvido’ de referências.

E aqui, a minha maior tristeza: num ápice de acesso ao que há de melhor produzido pela espécie Homo sapiens, minha surdez avança de maneira galopante. Estou no quinto otologista sem a mínima expectativa de diagnóstico após uma quantidade absurda de exames médicos; e minha qualidade de vida só deteriora de maneira infame.

Por isso, sou feliz pelo o que pude ouvir e apreciar. Como ateísta, tenho um pequeno sofrimento psicológico de não poder mais ouvir os “Concertos de Brandenburgo” de Bach ou Cesária Évora cantando “Negue”.

Quando este processo de surdez finalizar o seu percurso, espero ter algum resquício de células ciliadas auditivas para ouvir a minha esposa brigar comigo. Eu adoro ouvir a voz dela, mesmo renhindo das besteiras que faço.

When you’re aching and cracking up
Let me know when you’ve had enough

Till Deaf Do Us Part – Slade

Don't be a troll; neither a pussy too.